Na Beira do Abismo
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O escritor Isaac Asimov, como todos nós sabemos, tem uma vastíssima obra. De todas elas, há uma que considero fascinante por ser tremendamente significativa. Refiro-me, especificamente, ao conto “A sensação de poder”, escrito na década de 50 que, em resumidas contas, apresenta-nos a imagem de um futuro nada alvissareiro, onde a humanidade torna-se absurdamente dependente dos computadores, chegando ao ponto de não mais sermos capazes de realizar operações elementares de aritmética, de desenvolver raciocínios básicos sem o auxílio das traquitanas informáticas.
Hoje, todos nós, cada um ao seu modo, encontramo-nos rodeados de parafernálias desse naipe que não apenas resolvem para nós, de forma rápida, praticamente instantânea, cálculos matemáticos, mas também, realizam pesquisas para nós, nos guiam pelas estradas, corrigem nossos erros, alimentam nossos desejos por banalidades e, tudo isso, ao mero toque de um dedo numa tela lisa e fria feito um lâmina de gelo.
Não há como negar que tais ferramentas digitais facilitaram pra caramba incontáveis tarefas e agilizaram inúmeras outras, porém, ao nos brindarem com isso, de modo similar a um pacto mefistofélico, acabaram por exigir de nós um preço bastante elevado. Preço esse que, de um modo amplo e irrestrito, estamos pagando de bom grado, sem pestanejar, mesmo que às vezes nos coloquemos histericamente a espernear.
Mas e qual seria o preço desse “show da Xuxa”? Ora, se nós estamos abdicando do exercício de certas funções cognitivas para que essas sejam realizadas por uma entidade digital, não digo que elas irão atrofiar, mas, com toda certeza, nós iremos gradativamente nos tornando menos hábeis no seu manuseio, ao ponto de sentirmo-nos impotentes quando somos forçados pelas circunstâncias a ter que realizar algo que, rotineiramente, delegamos para um algoritmo, para um aplicativo, para uma inteligência artificial, ou para qualquer coisa desse naipe.
Diante do exposto, qualquer um de nós, que for minimamente sincero consigo mesmo, irá constatar que em alguma medida, nossa capacidade de atenção, juntamente com o nosso potencial de concentração, tiveram uma queda brusca nos últimos anos e, consequentemente, acabamos nos tornando mais impacientes, afobados e, é claro, um tanto ansiosos e, tudo isso, junto e misturado, acabou impactando de forma significativa o nosso discernimento, o nosso entendimento e, inevitavelmente, de alguma maneira terminou por refletir na potência da nossa inteligência.
Penso que, para constatar essa obviedade ululante, não seja necessário apontar as inúmeras advertências que atualmente nos são apresentadas pelo médico Miguel Nicolelis a respeito das implicações das mídias digitais, e outros bichos hi-tec, em nossas potencialidades cognitivas, muito menos rememorar as broncas, lúcidas e bem humoradas, que nos eram dadas pelo professor Pierluigi Piazzi, em seus livros e palestras sobre como nós deveríamos estudar para podermos, realmente, maximizar esse dom que Deus nos deu, que é a inteligência, tendo em vista que, praticamente, todo indivíduo, com um pingo de bom-senso, percebe que o excesso do uso de telas e tutti quanti, não está nos fazendo bem. Não apenas para nós, adultos, mas também e principalmente, para as tenras gerações.
Constata-se, infelizmente, que na atualidade se estabeleceu uma grande confusão, onde a massiva quantidade de informações, facilmente acessível, passou a ser encarada como sinônimo de ampliação da capacidade de compreensão dos indivíduos, como se o simples fato de termos a possibilidade de ter acesso a infindáveis informações fosse a garantia de que todos iríamos ter um elevado gabarito na formulação de hipóteses e na resolução de todo e qualquer tipo de problema, como se os entreveros da educação, ou da falta dela, pudessem ser resolvidos com um clique numa plataforma digital.
Ou, como diria o próprio Isaac Asimov, o mundo contemporâneo conquista cada vez mais novos domínios do conhecimento, numa velocidade muito maior do que as pessoas e as sociedades são capazes de assimilá-los e, deste modo, crescer em sabedoria.
Parêntese: o fato de não sabermos diferenciar com clareza informação de conhecimento, e estes dois da tal da sabedoria, por si só já é um mau sinal. Um mau sinal terrificante. Fecha parêntese.
E conhecimento aos borbotões, nas mãos de pessoas obtusas e de sociedades tacanhas, cedo ou tarde termina por se transformar em estultice maquiavélica e isso, como todos nós podemos muito bem imaginar, é perigoso pra caramba, para dizer o mínimo, porque não se educa um ser humano com um simulacro de humanidade, da mesma forma que não se aprender a superar problemas transferindo a resolução dos mesmos para uma entidade digital.
Enfim, admitamos ou não, estamos muito mais perto do cenário descrito por Isaac Asimov do que gostaríamos de imaginar, muito mais próximos do que gostaríamos de estar.