As religiões são tidas como um bálsamo para suportar os percalços e as angústias da existência e, ao mesmo tempo, buscar um propósito ético-moral para a vida. Esse é o lado positivo da fé. No reverso da moeda, ao longo da história as diversas religiões travaram combates ferozes para conquistar poder e glória, além dos corações e mentes dos fiéis.
Um personagem é e sempre foi essencial à expansão das religiões, sobretudo do cristianismo: o pregador. Desde os primórdios, é ele quem traduz a mensagem muitas vezes cifrada dos textos religiosos para grandes multidões, buscando convertê-las à sua fé. Quando têm êxito e suas igrejas florescem, alguns desses pregadores se aproveitam para acumular privilégios e riquezas.
No Brasil, o direito penal não tolera um crime cometido por algum suposto motivo religioso. Recentemente a imprensa noticiou que uma determinada igreja evangélica, a pretexto de angariar fundos para a compra de um canal de televisão, teria proposto aos seus fiéis, por intermédio de uma carta, que, durante os cultos religiosos, ‘se passassem por enfermos curados, ex-drogados e aleijados’ para assim ‘conseguir convencer mais pessoas a contribuírem financeiramente. ’
Tal fato, obviamente, não pode ser aceito. Afinal, por mais que as tais ‘contribuições financeiras’ àquela igreja sejam, na maioria das vezes, feitas mediante pequenas doações, é inegável que o conteúdo econômico amealhado com tal prática é extremamente alto, máximo se considerarmos que a igreja em questão possui inúmeros templos em diversos Estados.
Pois bem, analisando tal comportamento sob o aspecto eminentemente penal, de forma fria e sem qualquer preocupação religiosa, tal fato, se confirmado, pode, efetivamente, ser definido como um crime previsto em nossa legislação. Sob um olhar inicial, partindo do princípio de que o ‘teatro’ promovido pelos tais falsos ‘enfermos curados, ex-drogados e aleijados’ serviria como meio para incrementar as doações, fica fácil perceber que tudo não passaria de uma grande fraude.
Como o número de vítimas seria indeterminado, a fraude eventualmente perpetrada por pastores e pelos tais falsos ‘enfermos curados, ex-drogados e aleijados’, cujo fim, na realidade, é o de retirar dinheiro do povo, poderá ser definida como crime previsto na Lei 1521/1951 (crimes contra a economia popular), mais precisamente na figura típica do artigo 2º, inc. IX.
É bom que se diga que não apenas os pastores, mas também os falsos ‘enfermos curados, ex-drogados e aleijados’ e todos os demais envolvidos (ou seja, todos aqueles que têm ciência da fraude) poderão ser responsabilizados criminalmente, nos termos do artigo 2º, inc. IX, da Lei 1521/51.
Além do crime contra a economia popular, os agentes também poderão ser responsabilizados pelo crime de associação criminosa (art. 288, caput, do Código Penal), que substituiu o antigo delito de quadrilha, cuja pena privativa de liberdade pode variar entre 1 a 3 anos de reclusão.
Como se vê, embora muitos tenham a igreja ou a religião como puro ‘negócio’, fato é que o abuso da crença alheia, mediante fraudes e simulações, configura crime e pode, de fato, sujeitar seus autores à pena de prisão.
FONTE: Euro Bento Maciel Filho é advogado criminalista, mestre em direto penal pela PUC-SP e sócio do escritório Euro Filho Advogados Associados