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Não sei qual seria a maneira correta de introduzir-me nesta reunião.Na impossibilidade de agir como exige a tradição, eu saúdo a todos, pedindo a Deus misericórdia para os infeliz. Meus pais, aflitos, pedem noticias de mim, procuram-me por toda parte, exigem que eu lhes comunique como estou passando, desejam uma evidência da continuação da minha vida.
Desesperam-se, porque tardam as minhas cartas…
Esperam que a morte seja um trampolim para um mundo estranho, abstrato, talvez sobrenatural. Não se dão conta, como também não me dei, de que morrer é pegar um veículo em desabalada correria que nos arroja de chofre noutro lugar, sem nos arrancar da vida, atirando-nos numa dimensão poderosa e diferente que a mente antes não pôde conceber, mas que a defrontando não pode negar.
Pedem-me que lhes diga se é verdade que eu prossigo vivendo e gostariam que eu retornasse como um anjo para lhes incensar as vaidades pessoais, tornando-os privilegiados, diminuindo-lhes a responsabilidade no insucesso de que fui vítima.
Reconheço a minha imprudência, constato a minha miséria, mas não posso descartar que tenho sido vítima da educação e do meio onde vivi.
Meus pais deram-me tudo. Educação bem cuidada, liberdade, amigos e dinheiro, só não foram pais… Eu pude desfrutar de regalias, mas não pude desfrutar de uma família. De cedo, os vícios e as dissipações sociais que eu encontrei em casa passaram a tomar parte nas minhas horas. Como os vícios sociais constituem motivo de projeção na comunidade, eu projetei-me. Mas, aos vinte e três anos, a minha projeção se apagou no acidente de um Porche depois de uma ingestão de drogas além da dose habitual.
Que notícias eu posso dar? Dizer que despertei como um sátrapa, recolhido a um hospital onde a dor, nivelando os Espíritos, era também o meu quinhão da vida? Relatar o que tem sido este tempo sem tempo que o calendário da Terra não pode representar?
O arrependimento toma uma dimensão que se perde nas medidas habituais. Por isso, o vulgo diz que “se o arrependimento matasse” … No entanto, a muitos aniquila o corpo a outros tantos apaga a lucidez.
Eu diria a todos os pais, a todos aqueles que sentem saudade dos que viajaram para cá, que há um padrão de avaliação de como se encontram os que a morte conduziu para a realidade da vida. A conduta que tinham, as ações que praticaram, o comportamento que se permitiram – eis os documentos de identificação para receber aval para a felicidade ou algema para a desdita.
Muda-se de lugar, porém, não se muda de estado íntimo. E porque se encontram pessoas queridas que nos aguardam com lágrimas de júbilos quando aportamos no Mundo Espiritual, de maneira nenhuma este amor modifica a paisagem em sombra de quem enxergou o bem pelas lentes do mal, ou perdeu a oportunidade de agir corretamente, não há critério de exceção, nem regimes de privilégios.
Todos nós despertamos, no Mundo dos Espíritos, com o cabedal que trouxemos do mundo dos homens. Somente a conduta bem vivida e as ações bem delineadas constituem patrimônio de felicidade para os que a morte não consumiu.
Sem desejar enviar uma mensagem de desencanto, eu gostaria de dizer aos meus pais e a quantos esperam a prevalência de novidades e a caracterização de júbilos infindáveis pelos que morreram, que se resguardem no discernimento do equilíbrio, e, meditando sobre o que foram os seus amores, compreendam que permanecem iguais no esforço por melhorar-se, se encontram agoniados sob os látegos das próprias aflições…