Há um dado sobre a trava constitucional que é bem visível no trigésimo aniversário da Constituição, mas não no momento em que ela foi escrita. O bote dos constituintes no Executivo e no Legislativo não se repetiu no Judiciário, que manteve intocada a autoridade que tinha antes. O que isso provocou? Juízes passaram a mandar mais do que políticos. Sendo mais exato, os políticos passaram a mandar menos do que os juízes. Ainda que o artigo 2º da Carta fale em independência e harmonia entre os poderes, o bote parcial gerou um sistema desbalanceado. O Judiciário é livre para agir. O Ministério Público também. O Executivo e o Legislativo, não. Naquele tempo, com tribunais mais conservadores, o efeito não apareceu. Quando o ativismo passou a se expressar nas cortes, principalmente com as nomeações feitas nos governos Lula e Dilma, o desequilíbrio emergiu, tanto nas jurisprudências quanto na vida nacional.
Cidadã nos direitos, desconfiada dos políticos e reverente aos juízes, promotores e procuradores – assim saiu a Constituição. São conhecidas as críticas feitas à Carta por construir um texto visivelmente parlamentarista para, no fim, adotar o presidencialismo. Entendem os estudiosos que parte do nosso desajuste se deve a essa esquizofrenia. Mas puxar o freio do Executivo e do Legislativo e manter alçada apenas do Judiciário e do Ministério Público introduziu no nosso ordenamento um sistema híbrido que está na raiz de alguns de nossos problemas graves.
O governo estadual decide que o hospital planejado para a cidade A faz mais sentido na cidade B. Discordando da decisão, o promotor ingressa com uma ação civil pública e consegue do juiz uma liminar impondo a retomada do projeto original. A prefeitura resolve aumentar a tarifa de ônibus. Acionada pela procuradoria, a Justiça suspende o reajuste e determina a realização de uma auditoria para verificar a necessidade do aumento. O governo federal licita uma obra, mas o Ministério Público Federal identifica problemas. Entra na Justiça, suspende a concorrência, e o projeto fica no limbo por meses ou anos. Os três casos são teóricos, mas suas versões não ficcionais se repetem a todo instante no Brasil.
Provocado pelo Ministério Público, o Judiciário tem proferido sentenças que muitas vezes se confundem com a realização de políticas públicas. Há juízes mandando construir escolas, ordenando levantar penitenciária, parando estradas, determinando reajustes salariais, agindo como se fossem governantes eleitos. Critica-se o Executivo quando abusa das medidas provisórias e toma para si a tarefa de fazer leis, que é própria do Poder Legislativo. Em muitas de suas manifestações, o Judiciário faz o mesmo, atuando como parte do Executivo. O comportamento se repete em relação ao Legislativo, quando um juiz entende que, mais do que garantir a aplicação das leis, tem o direito constitucional de reescrevê-las. O Judiciário funciona, assim em parte porque olha para o Supremo Tribunal Federal e vê que ele também funciona assim, assumindo com frequência as competências dos outros poderes. Em vez de realizar uma leitura regular da Carta, o que já seria desafiador pelo volume de demandas que recebem, os ministros do STF têm adotado como solução dos conflitos formas variadas de interpretação. E que, não raro, se chocam umas com as outras. Quando a decisão é monocrática, é uma coisa. Na, turma pode sair outra. E, no plenário, algo diferente das outras duas. Os constituintes deram força ao Ministério Público, mas esqueceram que o MP só postula, não decide. E assim cresceu o STF. Hoje ele é o poder moderador, é o que tira a sociedade de seus impasses. Nem sempre…