Direito de resposta: afinal, o que ocorreu na UFFS?

Antissemitismo e discurso de ódio ou manifestação antirracista e de solidariedade?

Por Fábio Bacila Sahd, professor adjunto da UFPR

O dia 7/10/2024 ficou marcado no campus da UFFS, de Laranjeira do Sul, por manifestações críticas às práticas do Estado de Israel, que parte da mídia local classificou como discurso de ódio e manifestação antissemita. Afinal, como podemos compreender e classificar adequadamente essas ações no espaço da universidade? Foram atos isolados, revelando preconceitos arraigados, ou expressão de um movimento global de denúncia do racismo israelense e de suas consequências, como apartheid e genocídio? Enfim, a questão central é: Os manifestantes foram racistas ou antirrascistas? Vejamos.
O Estado de Israel foi fundado, em 1948, oficialmente como judaico e assim se mantém

legalmente desde então, ainda que exerça soberania sobre populações judaicas e não judaicas. Estas sequer podem contestar legalmente essa definição racial oficial do Estado, por mais que somem pelo menos metade das pessoas presentes no território. Os palestinos são demograficamente ainda mais representativos do conjunto da população mantida sob

soberania direta ou indireta de Israel quando consideramos os milhões de refugiados palestinos e seus descendentes, mantidos propositadamente alijados do território enquanto a um cidadão judeu qualquer outro país é garantido “o direito de retorno” e nacionalização. Relatórios de direitos humanos assim como análises das ciências humanas são certeiros ao apontar para a centralidade dessa fragmentação do povo palestino como estratégia do Estado israelense para manter seu regime de dominação e de opressão racial sobre eles.

Para quem desconhece o assunto, basta problematizar a simples existência na Palestina/Israel de um Estado com demarcação étnico-racial oficial, como ocorreu na Alemanha ariana e na África do Sul branca do apartheid. Para quem se dispõe a compreender a realidade um Estado reivindicar um pertencimento étnico-racial exclusivo em território multiétnico constitui fator central e explicativo suficiente das tensões. Cabe trazer alguns dados para ilustrar essa tese simples e lugar comum nas interpretações jurídicas e científicas do caso.
No começo dos anos 2000, o guardião do Pacto Internacional de Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais admoestou Israel a alterar sua definição racial exclusivista, pois a excessiva ênfase de que o Estado é judaico discrimina a parcela não judaica. A própria adesão do Estado israelense à Convenção Internacional de Erradicação de Discriminação Racial foi e segue sendo muito criticada. Inclusive, os relatórios periódicos do guardião dessa Convenção endereçados ao Estado parte reiteram a necessidade dele alterar suas práticas, pois promovem discriminação racial, violando assim os termos do documento base. Em 2012, o guardião incorporou em suas recomendações conclusivas também a denúncia de que Israel viola o artigo 3º da Convenção, alusivo à prática de segregação e apartheid. Há anos organizações da sociedade civil (inclusive entidades israelenses contrárias ao racismo estatal) vinham denunciado a “tese do apartheid” em “relatórios sombra” encaminhados ao guardião como contraponto à relatoria oficial do

Estado. Essa tese se popularizou a partir de 2007, quando o relator especial designado pelo

Conselho de Direitos Humanos da ONU, John Dugard, afirmou que a ocupação israelense de Gaza e da Cisjordânia apresenta elementos de colonialismo e de apartheid. Desde então, seus sucessores na relatoria especial assim como dezenas de organizações e agências da ONU já corroboraram esse entendimento, como as maiores organizações de direitos humanos do mundo, a Anistia Internacional e a Human Rights Watch, para além de entidades israelenses (B’Tselem, ICAHD, Yesh Din) e palestinas (Al-Haq, PCHR, Al-Mezan). Destaca-se um relatório consistente do Conselho Sul-Africano para Pesquisa em Ciências Humanas, coordenado por Virginia Tilley (2009) e a produção da atual relatora especial, Francesca Albanese, que além da tese do apartheid afirmou que as ações israelenses em Gaza constituem o crime contra a humanidade de genocídio, fundamentando o processo judicial apresentado pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça contra Israel e encampado por diferentes países, dentre eles o Brasil e, mais recentemente, a Noruega.

Em resumo, o Estado israelense não é uma democracia liberal padrão, mas já foi fundado em 1948 como um regime de apartheid, que para manter a dominação vem promovendo um genocídio, desde 2023. Ao violar direitos básicos gera revolta e violência e não o contrário. Assim, a devida compreensão dos fatos, seja no mundo seja na UFFS, requer esse

olhar que vai mais além da ação do Hamas em si, em outubro de 2023, compreendendo seu contexto, o que não significa necessariamente concordar com os métodos adotados pela resistência palestina. De todo modo, após essa breve apresentação da relatoria internacional, é inequívoco o entendimento de que as manifestações ocorridas na UFFS foram antirracistas e estão alinhadas com interpretações pacificadas do direito internacional sobre o racismo perpetrado pelo Estado israelense. Vale lembrar que, colonialismo, apartheid e genocídio são crimes raciais, sendo o segundo o fator estruturante. Mesmo assim, para quem ainda insistir na tese do antissemitismo para deslegitimar as críticas ao Estado de Israel precisa levar em conta tanto a produção acima referida quanto a produção intelectual de vários judeus antissionistas, bem como sua atuação política juntamente com a de organizações judaicas específicas, como a Rede Internacional Judaica Antissionista, Jewish Voice for Peace, If Not Now, South African Jews for a Free Palestine, entre tantas outras.

Referências dos documentos citados no texto

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